Viver a vida

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Miriam Gimenes

Jornalista recebeu diagnóstico de câncer incurável e, desde então, passou a encarar seus dias de outra maneira.

Ana Michelle Soares tinha apenas 28 anos quando ouviu do médico um diagnóstico determinante: ela tinha um câncer de mama agressivo. Desde então – há nove anos –  passou a fazer o tratamento e, mesmo sabendo da gravidade de sua doença, não pensou na morte, mas sim na vida. Em como  desfrutaria dos seus próximos dias, meses e anos que lhe restavam. 

Criou então o perfil @paliativas no Instagram, onde discorre sobre seu dia a dia, em que desmistifica a ideia de cuidados paliativos e se mostra como protagonista do tratamento. Ela descobriu que sua doença tomou todos os órgãos e não há mais possibilidade de cura. A história completa está no livro Enquanto eu Respirar (Editora Sextante, 240 páginas, R$ 39,90), em que, ao invés de esperar a morte, celebra a vida. Confira como ela lida com a doença seguir:

“Certa vez fui ao cinema me distrair um pouco da rotina exaustiva do tratamento. Havia recomeçado a quimioterapia há poucos meses e ainda me adaptava ao lenço colorido que ornamentava meu rosto. Coloquei uma máscara para proteger minha imunidade e escalei uma grande amiga para a função de acompanhante. Sentei nas penúltimas fileiras, as mais disputadas. Imediatamente fui cercada por olhares curiosos, amedrontados e compassivos. Já estava acostumada. Luzes apagadas e os traillers dos futuros lançamentos começaram a rodar na tela gigante. Aventura, suspense, desenho animado... muitas opções. Entre um pipoca e outra um enredo adolescente chamou minha atenção: uma das personagens tinha câncer. Diálogos divertidos na trama e cochichos na fileira de trás. Eis que surge o nome do filme em letras garrafais na tela: Eu, Você e a Garota que Vai Morrer. Como num impulso de cumplicidade, eu e a amiga nos olhamos  e caímos na gargalhada enquanto as pessoas ao redor se afogavam em seu próprio constrangimento.

Muito prazer, meu nome é Ana Michelle e sou uma garota que vai morrer. Aposto que você pensou “todo mundo vai”. É verdade. Todo mundo vai morrer. Sem exceção. Por que será, então, que causa tanto desconforto ouvir ou ler algo tão óbvio, quando, na verdade, o grande desafio é estar vivo até o dia da morte?

Existe uma espécie de comodismo na sensação ilusória de que somos imortais. Lutamos contra o tempo e no mesmo momento desejamos que ele passe rápido. Não queremos envelhecer, mas acordamos na segunda esperando pela sexta. Postamos sobre felicidade e esquecemos de apreciar a bela paisagem retratada. Recitamos frases de positividade, mas mergulhamos diariamente no mar do ego que nos cega para nossas relações. Falamos de vida e ignoramos que ela acaba. A qualquer momento. 

Morrer é físico, biológico, exato. Envelhecer é a melhor hipótese. Há quem diga preferir morrer de susto, outros aos 110 anos na cama quente. Era meu desejo também, mas aos 28, meu tempo passou a ser contado de forma diferente enquanto meu corpo luta para permanecer no jogo depois de nove anos de exames, quimioterapias e idas e vindas de um câncer incurável. É quase subversivo ser uma mulher tão jovem ciente da própria finitude, quando, na verdade, o diagnóstico não me diferencia em nada de você, uma vez que a morte é democrática e imprevisível. Mas, ciente da minha mortalidade, reaprendi a viver. E tenho vivido os melhores últimos dias, meses, anos da minha vida. 

Quanta gente saudável que já morreu não estando viva.

Quanto tempo desperdiçado esperando pelo futuro hipotético para ser feliz. 

É morrendo de vez em quando que aprendemos o valor de cada ciclo e relação. É olhando para a vida que sentimos o quão poderoso é o ar que baila no movimento perfeito da respiração.

Nessa jornada percebi que vale mais uma vida curta por inteiro do que uma longevidade pela metade. Porque a vida bonita mesmo é aquela que é infinita em cada momento... e isso não tem a ver com tempo. 

O Filme que assisti naquele dia foi Como eu Era Antes de Você. Antes de descobrir minha mortalidade, eu sobrevivia. Hoje, sou uma menina com câncer, mais saudável do que a maioria das pessoas. E isso, para mim, é cura. Não somos imortais. 

Mas enquanto eu respirar, vou viver infinito. E você?”

 

 

 



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