Elas não brincam comigo

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Miriam Gimenes

Quando se é mãe tudo que está relacionado aos filhos tem consequências diretas em nosso emocional. Tanto para o bem quanto para o mal. Há pouco levei o meu para assistir a um show e durante apresentação foram jogadas balas para as crianças. Ele não conseguiu pegar, mas o menino ao seu lado sim. Curioso, Lucas perguntou para ele se a bala estava boa – estava com vontade, é claro – e o menino o mandou calar a boca. Ele me olhou desesperado, com a certeza de que eu tinha visto e sem saber como reagir, com toda sua inocência infantil. Aquilo me deu um nó na garganta. E isso nem de longe se compara a uma situação grave, como o preconceito, por exemplo.

Digo isso porque esses dias li o post de uma mãe, a youtuber Ana Paula Xongani, que me causou o mesmo desconforto, o mesmo aperto e muita indignação. No texto, que teve milhares de compartilhamentos, ela, com razão, disse ter escrito com lágrimas nos olhos, descreve uma situação em que notou que outras meninas não brincam com sua filha no parquinho do prédio por ela ser negra. Veja na íntegra: “Tem muita coisa linda na maternidade, mas tem muitas dores também. Ser mãe de uma menina preta me trouxe muitos medos, muitos desafios e muita força. É muito triste ver a sua filha sendo rejeitada! Mesmo antes de dizer ‘olá!’ ela chega perto e todas correm, ela se aproxima, e todas as outras se agrupam, ela chama e ninguém responde. Isolam-a, excluem-a, a machucam. Ela não entende, mas sente. Não reclama, mas entristece. Meu coração parte! Dessa vez eu estava aqui espiando, chorando e pensando em formas de acolher a minha filha. Dessa vez eu chamei ela para o meu colo, abracei, disse que ela era linda e inteligente, falei que a amava. Mas e quando eu não estiver? A gente sempre fala da solidão da mulher negra, muitas vezes relacionada à afetividade adulta. Mas essa solidão começa muito cedo, começa na infância. O racismo é aprendido pelas estruturas e reproduzido pelos pequenos de forma assustadora. Tivemos avanços, mas as nossas meninas negras ainda são preteridas, rejeitadas, isoladas. À minha filha eu perguntei: ‘Suas amigas não querem brincar?’ E ela me respondeu: ‘É sempre assim, mãe, mas eu não me importo, gosto de brincar sozinha.’ Será que gosta? Ou aos 4 anos já se protege na solidão? E, pra você que acredita que é ‘coisa de criança’, certamente você não é uma mulher negra. Nós, mulheres negras, vivemos esses mesmo traumas na infância, foi ruim, mas com o passar do tempo a gente esqueceu, superou ou refletiu em outros momentos da vida. Mas ser mãe te faz reviver alguns deles, e dessa vez de forma mais intensa e muito mais dolorosa. Dói muito!”, diz.

E como dói. Em um vídeo no seu canal, em que faz um trabalho de fortalecimento de mulheres negras, ela diz, de maneira emocionante, ter pressa de mudar o mundo para que sua filha não passe mais por isso. Compartilho com ela essa pressa. Não é possível que as pessoas ainda possam ser discriminadas por serem negras, por terem nascido em outro País – vide a situação em que Donald Trump colocou os imigrantes ilegais nos Estados Unidos – ou qualquer outro tipo de característica.

Conversei com Ana Paula, que disse ter passado por situações semelhantes à da filha, não só quando criança, mas também na adolescência e na fase adulta. “Superar nunca superamos, mas a gente aprende a lidar. As marcas ficam para sempre. Mas o que me manteve forte é que eu tenho uma família unida e consciente, que me ensinou que o problema não sou eu. O amor deles sempre me manteve de pé.”

Nós, que somos responsáveis por outros seres humanos, temos de trabalhar para que isso não volte a se repetir. Nelson Mandela (1918-2013), que passou a vida lutando contra o racismo, deu a receita, é só seguí-la: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.” Assino embaixo.




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