Nem 'Pixote' salvou Pixote

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Miriam Gimenes

 

Oito tiros colocaram fim a uma vida que de tão louca se tornou breve. Fernando Ramos da Silva (1967-1987), garoto que viveu na periferia de Diadema e teve seu rosto conhecido pelo mundo aos 12 anos, por conta do Pixote – A Lei do Mais Fraco (1981), de Hector Babenco (1946-2016), há três décadas (que serão completadas na sexta-feira, dia 25), foi morto aos 19 anos por policiais após suposta tentativa de assalto. O ator não conseguiu prolongar a fama que alcançou e, assim como a do personagem – pelo qual ficou marcado –, sua história terminou sem um final feliz. “Ele foi da fama à lama”, analisa o diretor teatral Carlinhos Lira, de São Caetano, que participou da produção do longa. 

Fernando, que já fazia teatro amador em Diadema, mas não sonhava em ser famoso, foi escolhido entre 1.500 crianças para interpretar o protagonista, um menino de rua que, em um reformatório, aprendeu a se virar na vida com o crime. “O olhar de Fernando era o que Babenco queria, ele mesmo me disse isso. O menino nasceu artista”, diz Lira. Não à toa, o longa repercutiu no mundo e ganhou admiradores internacionais, foi premiado na Suíça e Espanha, e fez história no cinema nacional. “Babenco trouxe característica de documentário para dentro do filme e mostrou a realidade de São Paulo, já que antes apenas só se falava do Rio”, diz Diaullas Ulysses, coordenador do Cine Eldorado, de Diadema.

Uma vez feita história, o papel acabou por marcar Fernando. Ele chegou a fazer Eles Não Usam Black-tie, participou de novelas na Globo, mas a carreira artística não decolou. “Se alguém tivesse ido morar com ele no Rio, para incentivá-lo a estudar e seguir a carreira na Globo, o destino talvez fosse outro. Houve falta de acompanhamento em todos os sentidos: psicológico, escolar e um ‘pai’ ao seu lado”, frisa Lira. Fernando voltou, então, para Diadema para morar com a mãe, Josefa Aquina de Oliveira, que além dele teve nove filhos – outros dois também morreram assassinados.

Lira, que lidera o MCTA (Movimento Cultural Teatral e de Artes), de São Caetano, lembra que, um mês antes da morte, estiveram juntos em Campina Grande, na Paraíba, para encenar a peça Ataliba, Meu amor, em que Fernando interpretou um pistoleiro morto por policiais. “Foi mais que um presente levar ele para lá. Conheceu a terra dos seus avós paternos, fez comerciais, mas pouco tempo depois perdeu sua vida em Diadema”, lembra.

O fato é que ao ver sua fama esvair com o tempo, Fernando se desesperou. Pintou um papel ou outro, mas o crime lhe pareceu a única alternativa para conseguir dinheiro. Foi preso a primeira vez aos 16 anos, após roubar uma TV e um rádio. “A fama, ao mesmo tempo te alça para o brilho, você está em todos os jornais e televisões, mas rapidamente te tira dos holofotes, tira o chão. Já o crime é fácil entrar. Ele está em todas as esquinas. O jovem não tem oportunidade de emprego e, consequentemente, existe essa coisa o tempo todo dizendo que tem de fazer sucesso. Ele não consegue ter e, daí, torna-se presa fácil”, diz Gilberto Moura, ex-secretário de Cultura de Diadema, que atuou ao lado de Fernando como Dito, em Pixote. Começaram juntos no teatro.

Fernando passou, portanto, a participar de furtos esporádicos. Ao contrário das reportagens iniciais, que mostravam seu sucesso em capas de jornais, o ator foi parar nas policiais. E deu no que deu. A sua lápide ganhou uma cor de destaque no Cemitério Municipal de Diadema, mas se vista com um olhar amplo – diria metafórico – virou apenas mais uma que abriga um garoto de periferia vítima da sociedade em que viveu.

Fim de Fernando inspirou livro que está prestes a ser lançado
Era para ser um registro sobre os 30 anos do lançamento do filme, mas, ao começar a pesquisa para seu trabalho de conclusão de curso, em 2010, o jornalista Paulo Eduardo Dias viu que a história de Fernando Ramos da Silva era interessante demais para perder o protagonismo para o longa. Por isso, se debruçou nos últimos sete anos no livro que deve ser lançado até o fim do ano, Pixote: 30 Anos À Espera da Justiça.

A morte de Fernando se deu após suposta tentativa de assalto que ele teria se envolvido na Rodovia dos Imigrantes. Ao ser avistado por policiais, ao lado de um menor, abordando um transeunte, passou a ser perseguido e, ao se esconder em uma casa, no Jardim Canhema, foi encontrado.

De início, os policiais (um sargento e dois soldados da Polícia Militar) disseram ter havido troca de tiros, o que depois ficou comprovado que não ocorreu. Os policiais foram expulsos da corporação, mas não ficaram um dia presos. Cida Venâncio, sua mulher, e a filha, que à época de sua morte tinha 2 anos, entraram com uma ação por danos morais, ganharam, mas até hoje não receberam nada. Virou precatório. Cida foi procurada, mas não quis falar com a equipe de reportagem. “A família tem uma marca forte de violência. A mãe (do Fernando) trabalhava o dia todo e deixava os filhos soltos na rua, os irmãos dele morreram assassinados também (Paulo e Valdemar Ramos da Silva). Precisava contar essa história”, diz Paulo.

Em todo tempo de apuração, o que sentiu, acrescenta, é que Fernando entrou no crime por falta de estrutura emocional, é claro, mas também como uma forma de aparecer. “Ele queria dizer que estava vivo, queria as páginas dos jornais. Entrou (no crime) para poder aparecer, mostrar que não era ator de um papel só. Mas não deu certo”, diz o jornalista.

O filme e o desfecho de Fernando não tiveram final feliz, mas contribuíram, segundo o coordenador da comissão da criança e do adolescente do Condepe (Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana), Ariel de Castro Alves, de mobilização para criação do ECA (Estatuto da Criança e Adolescente), aprovado em 1990. “ O destino dele, infelizmente, acabou reproduzindo a história do cinema. Mas a trama de Pixote e todo o drama do Fernando foram um marco na luta em defesa da infância e juventude do País.” A falta de estrutura sóciofamiliar, aliada à omissão do Estado foram, para Alves, determinantes para esta história não ter durado nem 20 anos.

Para que a história não se repita
O ano era 1981 quando o norueguês Gregory John Smith assistiu pela primeira vez ao filme Pixote – A Lei do Mais Fraco, no seu país. E a história contada por Hector Babenco, que mostra a triste realidade dos meninos de rua que moravam no Brasil à época, com destaque para Pixote, mexeu de sobremaneira com o rapaz que, nos dez anos seguintes, não pensou em outra coisa a não ser que precisava fazer algo que amparasse as crianças em situações de risco.

Ele, que já havia viajado 57 países, mas não tinha vindo para cá, confessa ter ficado chocado com o longa. “Da mesma forma que impressionou muita gente. Porque não se sabe muito da realidade aqui no Brasil. (No Exterior imaginam que) É um País tropical, do samba, do futebol, do Carnaval, das praias lindas... Essa história me abalou também porque conheço pobres e ricos de vários países do mundo e nunca me conformei com a vida que muitas crianças levam.” Em 1991 sentiu, portanto, que precisava fazer algo. Não podia se conformar com sua vida sem necessidades, enquanto outros não viviam isso.

Em um primeiro momento, trabalhou por curto espaço de tempo na Casa Pixote, que ficava em Santos, gerenciada por uma norueguesa amiga sua. A mesma fechou por questões políticas e ele voltou para Noruega. Mas sentiu que aqui era o seu lugar. No ano seguinte deixou para trás família, uma carreira bem-sucedida como empresário, vendeu tudo e veio para o Brasil com duas malas (uma com documentos, fotos dos seus e, a outra, com roupas) e uma vontade: fazer sua parte para mudar essa triste realidade.

Procurou abrigo em um município onde havia um clube de campo escandinavo: Diadema, a mesma cidade onde Fernando Ramos da Silva, o Pixote, viveu. “Foi incrível como cheguei aqui realmente. Eu tinha o Brasil inteiro para ir, que é imenso, e acabei em Diadema. Não sabia que Fernando era daqui. Com certeza é coisa do destino. Nada aconteceu por acaso.” Ficou neste espaço por um tempo, mas logo foi convidado a se retirar, porque passou a abrigar garotos de rua que viviam na Praça da Sé, o que não agradou os frequentadores de lá.

Ganhou então abrigo em uma chácara próxima e começou seu trabalho com as crianças, que já soma 25 anos. Fundou a Rede Cultural Beija-Flor, que hoje fica no bairro Eldorado, e também tem sede em Itanhaém. De lá para cá já foram cerca de 50 mil pessoas atendidas pelos projetos educacionais de prevenção, como: expressão artística, esporte, meio ambiente, geração de renda, comunicação social, saúde preventiva e educação nutricional. Hoje, por questões financeiras, reduziu esse número para 400 crianças da comunidade. A crise brasileira, inclusive os escândalos de corrupção, afastou os maiores investidores no projeto, que são estrangeiros.

Neste um quarto de século, alguns pequenos ele não conseguiu salvar – e lembra disso com lágrimas nos olhos –, mas muitos outros saíram vitoriosos de um destino que não estava traçado para ser dos melhores. “Tem muitos jovens que eram ‘Pixotes’ na vida e que hoje são pessoas independentes, bem-sucedidas. Fiquei feliz por isso e quero ver muito mais. Meu sonho é que esse trabalho prossiga.” Não só as crianças, como também o mundo, agradecem.




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