Não romantize a violência

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Aline Melo

Se você, assim como eu, é uma pessoa privilegiada (ter renda, abrigo e estar minimamente confortável durante a pandemia de Covid-19 são privilégios sim, não podemos esquecer) também deve gastar várias horas do seu dia em frente à TV e na Netflix. No site, o mais famoso de streaming de filmes, uma das produções mais acessadas nos últimos dias é o filme “365 dias”, baseado em livro homônimo. O livro faz parte de uma trilogia escrita pela polonesa Blanka Lipinska, mas antes de falar sobre a película, faço um alerta: não romantize a violência.
 
O filme, que eu achei péssimo e de mau gosto, não só pela temática, mas também pelas interpretações, narra a história de uma jovem que é sequestrada por um mafioso italiano durante uma viagem de comemoração de seu aniversário. Cinco anos antes do crime, o homem esteve entre a vida e a morte e teve uma visão com o rosto da mulher por quem fica obcecado e decidido a encontrá-la. Uma vez sequestrada, a moça recebe um prazo de um ano (daí o nome do filme/livro) para se apaixonar pelo seu sequestrador, um homem milionário, bonito, poderoso e agressivo.
 
O filme é uma sequência de clichês do que há de pior sobre relacionamentos: que toda mulher pode ser comprada com dinheiro, que mesmo que uma mulher diga não é só o homem insistir que ela vai ceder, que vale tudo por amor, inclusive obrigar alguém a agir contra sua vontade e por aí vai. Já havia lido sobre como o filme era problemático, mas fiz questão de assistir para levantar esse debate. Não romantize a violência.
 
Alguém pode argumentar: ah, mas é só um filme. Não é. Os filmes, os livros, as artes, tudo dialoga com a sociedade e com a vida real. Se existem obras – e elas são inúmeras – que reforçam esses estereótipos, que exaltam o “amor controlador”, que mostram que o ciúme é uma prova de amor, é porque isso tudo está amplamente difundido entre as pessoas. 
 
O nosso código penal prevê que se alguém cometer homicídio “impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”. È o chamado crime passional, que simplesmente não existe. A maioria absoluta dos ditos crimes passionais são de homens que matam mulheres que são ou já foram suas companheiras, porque houve traição (ou porque eles imaginam que tenha havido) ou porque não aceitam o término do relacionamento. Dizer que esses homens matam movidos por paixão é, ao mesmo tempo, tirar a responsabilidade dos assassinos e revitimizar as mulheres. Quem ama não mata. 
 
O ciúme, longe de ser prova de amor, é demonstração de posse. Temos ciúmes do que acreditamos ser nosso, seja um livro, um disco, uma roupa ou uma pessoa. Mas nossa socialização é feita sob o senso comum de que “quem ama cuida”, e que ter ciúme seria demonstração de apreço. Não existe nível saudável de ciúme, que é motivado muito mais pela falta de confiança e autoestima de quem o sente, do que pelo amor de quem é o alvo deste sentimento. O ciúme, o controle, a posse, são a base de uma pirâmide de agressões que, não raro, tem em seu topo o feminicídio, que de janeiro a maio fez 78 vítimas no Estado, duas delas no Grande ABC.
 
Nesse mesmo site citado estão disponíveis excelentes títulos para quem quiser conhecer mais sobre o feminismo. Obras que contam a vida de mulheres que foram pioneiras em seu tempo, como “Mary Shelley”; documentários como “Feministas: o que elas estavam pensando”, “Roe x Wade, direitos das mulheres nos EUA” e “Absorvendo o tabu”, além dos ficcionais “Eu não sou um homem fácil” e “Inacreditável”. Uma boa oportunidade de aproveitar o privilégio que é ter acesso a tudo isso, refletir e desconstruir.



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