Videogame mocinho ou vilão?

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Luis Felipe Soares

A sociedade tem atribuído ao advento tecnológico, usado por jovens e adultos, responsabilidades que não lhe cabem.

A ideia de jogo remete a atividade física ou mental que tenha finalidade recreativa. O tempo imerso de uma ação desse tipo é dedicado a deixar de lado a ‘seriedade’ do mundo real para que os minutos ou horas gastos sejam agradáveis – na medida do possível. Esse também é o objetivo principal por trás do desenvolvimento de obras eletrônicas, com os videogames sendo capazes de superar mercados tradicionais e poderosos como cinema e música. A importância da mídia tem total capacidade de chamar a atenção do público por conta de títulos novos, tecnologias surpreendentes ou feitos imponentes, mas os holofotes se voltam para esse universo cibernético por conta de sua suposta má influência que pode ter nos gamers, com esse público tendo buscado algum tipo de referência em obras consideradas violentas para realizar crimes que chocam a sociedade. Na busca por culpados,  a imagem digital de matança, combates e conflitos armados dos monitores, tablets ou smartphones pode até soar suspeita, mas está longe de trazer explicações ou respostas para os casos, com toda uma comunidade gamer desacreditando esse debate e não havendo qualquer tipo de comprovação de que os videogames inspirem qualquer tipo de massacre.

O tema volta à tona por conta dos assassinatos realizados por um jovem adulto de 25 anos e um adolescente de 17 anos na Escola Estadual Professor Raul Brasil, na cidade de Suzano, na Região Metropolitana de São Paulo, ocorrido no mês passado. Parte das atividades realizadas pela dupla passa por tempo em lan house, local qual, entre outras possibilidades no computador, gastavam atenção em jogos de tiro. O detalhe chamou a atenção do vice-presidente da República, Hamilton Mourão: “É muito triste e temos de chegar à conclusão por que isso está acontecendo. Essas coisas não aconteciam no Brasil. A minha opinião é que hoje a gente vê essa garotada viciada em videogames. E videogames violentos. É só isso que fazem. Eu tenho netos e vejo meus netos muitas vezes mergulhados nisso aí. É isso que a gente tem de estar preocupado”. Não demorou para que as redes sociais fossem tomadas por comentários favoráveis ao entretenimento por meio da hashtag #somosgamersnaoassassinos (Somos Gamers, Não Assassinos), com os mais indignados postando relatos pessoais positivos e desejando que problemas mais palpáveis fossem investigados. “Escolha outro culpado para as incompetências de uma sociedade doente”, aparece escrito em popular arte que correu a web nesse movimento. 

Também em março, grupo gerou caos na Nova Zelândia ao invadir duas mesquitas e matar 50 pessoas, além de ferir dezenas. Um dos atiradores transmitiu ao vivo parte da barbárie no Facebook  e deixou manifesto de extrema-direita e em defesa à supremacia branca, com o documento fazendo alusão a diversos fatores que o teriam levado aos assassinatos em massa, incluindo referência a jogos eletrônicos – sem contar o formato da gravação, que faz com que ele se assemelhe à visão dos personagens dessas missões cibernéticas.  “A sociedade é violenta desde que nós éramos neandertais. Pessoas que vão ter condutas que a gente não espera irão ter para sempre. Infelizmente, não há o que se fazer para curar de uma vez por todas. Influências por influências, antigamente se reclamava de músicas que poderiam incentivar suicídios ou coisas do tipo. Já vi gente reclamando de filmes, que obras violentas seriam ruins. Não dá para generalizar que, se um indivíduo faz uma coisa, necessariamente os outros também vão fazer. Algumas pessoas são doentes, precisam de ajuda psicológica e, muitas vezes, não têm o suporte da família por trás. Não têm uma cabeça muito organizada e acabam indo para um caminho errado, se sentindo no direito de fazer maldades com os outros. Isso é muito triste”, lamentou o paulista Gabriel ‘Fallen’ Toledo, pro player de Counter-Strike: Global Offensive do time MIBR (Made In Brazil), uma das principais figuras nacionais do cenário de e-sports.

O grande marco contemporâneo desse tipo de tiroteio em massa completa 20 anos neste mês. Em 20 de abril de 1999, dois alunos da Columbine High School, nos Estados Unidos, entraram no local com forte armamento e tiraram a vida de 12 colegas e um professor. Claro que a possível influência negativa de games violentos da época, a exemplos de Doom, Quake III Arena,  foi discutida sem qualquer resultado efetivo. No mesmo ano, em 3 de novembro, em São Paulo, o então estudante de medicina Mateus da Costa Meira invadiu sessão de cinema do filme Clube da Luta e disparou contra a plateia, matando três pessoas. Juíza acreditou que Mortal Kombat, Doom e Duke Nukem 3D tiveram parcela de responsabilidade na atitude do rapaz e os títulos foram, momentaneamente, proibidos de serem vendidos. 

“Obviamente que os jogos eletrônicos não são os culpados pelas atitudes dos jovens. O que temos atualmente é uma sociedade que possui enormes dificuldades de educar os filhos, com regras claras e limites. Muitos de nós conhecem crianças que ganham celulares e tablets de presente na mais tenra infância, e possuem vasta aptidão no uso de tais aparelhos. O que está ocorrendo é o exagero no uso desses equipamentos como forma de controle das ações infantis. Por exemplo: criança chora? Dá o celular; Criança está entediada? Dá o tablet. Criança faz birra? Dá um joguinho para distrair. As crianças estão sendo educadas por aparelhos eletrônicos e o contato humano e afetivo está cada vez mais sendo colocado em segundo plano”, afirma a professora Ana Flavia Costa Parenti, coordenadora do curso de Psicologia da Unicid (Universidade Cidade de São Paulo) e especialista no comportamento do adolescente. Segundo ela, os jogos são maneira de extravasar emoções e o público tem interesse por diferentes tipos de produções por conta de sua personalidade em processo de formação, principalmente na adolescência. Por motivos específicos e individuais combinados, há quem prefira os exemplares mais extremos. “Sempre estivemos expostos a esse tipo de material violento. Desenhos animados são violentos desde a época de Pica-pau e Tom & Jerry. Cabe aos pais monitorarem a exposição de seus filhos aos conteúdos e conversar a respeito, orientar sobre o assunto e explicar a diferença entre realidade e ficção. A mente adolescente está em formação e precisa de aconselhamento e apoio.”

Morador de Santo André, Leonardo Alexandre Sterci confessa que passa muito tempo diante da tela se distraindo com títulos como Anthem, Apex Legends e capítulos da popular franquia Call of Duty, com a ação e a velocidade dos acontecimentos sendo os chamarizes das atrações que escolhe. Ele tem ouvido diversos relatos sobre esse debate e ignora qualquer argumento que acuse seu passatempo favorito. “Não faz sentido (a discussão). Até porque, se essas pessoas tivessem jogado Banco Imobiliário elas não teriam se tornado milionárias”, compara o estudante do ensino médio, comentando ainda que os amigos concordam com sua ideia. O menino de 15 anos não conversa sobre o assunto com os pais, que tentam ficar de olho nas atividades e no comportamento do filho. “Eu não lembro que jogo ele joga. Sei que são jogos de armas, no geral. Acho que influencia, sim, a violência. Tem pessoas que têm a mente mais fraca e se deixam levar por isso”, opina a mãe, Kelli Sterci, acreditando que Leonardo tem ‘cabeça boa’ e que ele não seria influenciável.

O andreense Ivan Monice Garcia cresceu  tendo os videogames como seu principal hobby. Entre diferentes atividades no dia a dia, sempre encontrou tempo para se distrair e se divertir ao imergir em vida virtual dentro de uma caixa tecnológica. “O fato de não haver consequências e de não ter conexão com a realidade a partir do momento que eu ligo o console é o que me faz, todos os dias, voltar e jogar um pouco mais”, conta o advogado de 25 anos. Ele é jogador casual de  Counter-Strike, Battlefield e Tom Clancy’s Rainbow Six, para citar produções que simulam combates entre armas de fogo, e vê que todos eles, sim, pregam por matança geral entre os participantes virtuais. Apesar do clima de tiro, porrada e bomba, o jovem destaca a questão principal por trás do que chama de “máscara violenta”: estratégias para se vencer os inimigos como se fosse um gigantesco tabuleiro de xadrez, mas trocando as peças por avatares recheados de armamentos. “O que acontece é que, quem não conhece, não entende os jogos. Muitos acham que existe a ideia de ‘entrar’ em um personagem, mas não é isso. Um game realista é até sem graça. Acaba sendo um alvo fácil e a mídia vai falar mesmo e culpar a primeira coisa mais rápida que puder. A mídia especializada em games precisa se posicionar e se fortalecer para rebater essas acusações fracas. Os games não são nem um terço dessas histórias que terminam em mortes. Está na hora de darmos um basta nisso. Trabalhando em um escritório de direito, Garcia afirma que esse tipo de informação não gera discussão entre os advogados por ser “muito fútil e sem fundamento”, sendo difícil de provar a responsabilidade de um jogo em cima de um crime.

Pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, tentaram encontrar indícios se essa relação deve ser levada em conta. Em estudo, conversaram com 1.004 jovens com idades entre 14 e 15 anos, além de entrar em contato com os pais e responsáveis dos participantes. Sentimento de raiva e sensações mais extremas apareceram ao longo da análise quando as ‘cobaias’ jogavam e se frustraram em certas situações, mas nenhum dado comprovou a relação direta entre jogos violentos e agressividade de seus fãs. “Os resultados fornecem evidências confirmatórias de que o envolvimento violento com videogames, em geral, não está associado à variabilidade observável no comportamento agressivo dos adolescentes”, diz trecho dos comentários finais do projeto. “Apesar das descobertas nulas identificadas no presente estudo, a história nos dá razões para suspeitar que a ideia de que videogames violentos conduzem a comportamentos agressivos continuará sendo uma questão não resolvida para pais, especialistas e formuladores de políticas”, alertam.

A psicóloga Ana Flavia Costa Parenti avalia que a situação psicológica dos gamers – e de qualquer jovem – passa por diferentes questões, casos dos relacionamentos com os pais, situação do ambiente familiar, o contato com colegas e professores na escola e seu desempenho escolar. “Adolescentes que tiveram apoio emocional desde a infância têm menor probabilidade de desenvolver algum tipo de transtorno emocional na vida adulta. Estamos vivendo período em que os pais precisam voltar a estar próximos emocionalmente de seus filhos, dar mais atenção, ter longas conversas, orientar sobre questões do mundo e parar de deixar que a internet ocupe esse lugar.” O controle e o avanço desses personagens reais passam por complicações mundanas que ainda estão longe do universo virtual.

 



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