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Caroline Manchini
Refugiados enxergam no Brasil a chance de sobrevivência, mas se preocupam com futuro
Guerras, perseguições políticas e religiosas e condições desumanas obrigaram milhares de pessoas a deixarem seu país de origem para tentar sobreviver de forma digna ou simplesmente para salvarem a própria vida. A fama de acolhedor e a facilidade em conseguir visto fizeram com que muitos destes refugiados escolhessem o Brasil como destino, porque aqui enxergam uma segunda chance e a possibilidade de reconstruírem suas histórias longe do ódio e da violência. O que a maioria desconhece, no entanto, é que, apesar de receptivo, o País carece de políticas públicas voltadas a eles.
Ainda que o Estatuto do Refugiado, promulgado em julho de 1997, garanta assistência e proteção às pessoas que estejam em situação de refúgio, e a nova Lei de Migração, de maio de 2017 – que substitui o Estatuto do Estrangeiro, de 1980, – facilite a regularização dos estrangeiros, o sociólogo Marcelo Ennes, especialista na questão migratória, acredita que o Brasil tem muito a evoluir. “Estamos no começo de um trabalho que deve ser mais consciente e organizado”, diz. “Em relação ao aspecto jurídico, o País é o que melhor acolhe os refugiados. A questão da hospitalidade acaba sendo relativa, já que a situação econômica de cada região é muito distinta. Para alguns governadores esse acolhimento acaba onerando o Estado”, acrescenta o historiador Alexandre Mendes.
É por esse e outros motivos que a maioria das iniciativas de acolhimento aos refugiados é criada por ONGs (Organizações Não Governamentais), instituições católicas ou pelos próprios brasileiros e imigrantes. O problema é que essas ações sociais são insuficientes, se compararmos o grande número de pessoas que se refugiaram no Brasil nos últimos anos. Somente em 2017 o Conare (Comitê Nacional para os Refugiados) recebeu 33.866 solicitações de refúgio. Mais da metade delas, 17.865, são de venezuelanos, que deixaram o país para fugir das crises econômica e política. Em seguida estão os pedidos de Cuba (2.373), Haiti (2.362) e Angola (2.036). “A questão dos refugiados venezuelanos deve ser tratada por nossos governantes como uma crise humanitária, colocando em prática a lei para pessoas em estado de refúgio por meio da manutenção dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana”, pontua Mendes.
Hoje, são reconhecidas como refugiados no País cerca de 10.145 pessoas, de acordo com dados do relatório Refúgio em Números, publicado pelo Conare no fim do ano passado. Porém, apenas 5.134 estão com registro ativo. As responsabilidades do governo quanto ao solicitante se restringem à documentação e ao acesso aos sistemas públicos de Saúde e Educação. Portanto, são poucas as ações sociais que os inserem na sociedade. É por isso que, ao chegar e se instalar no Brasil, os refugiados se dão conta de que o desejo de vida perfeita pode ser utopia. A maioria deles desembarca em terras brasileiras e, sem moradia, procuram imediatamente ajuda de ONGs ou instituições católicas. Foi o que aconteceu com a angolana Paulina Graciete, 17 anos, que fugiu com a família para o Brasil em 2016. “Procurei uma instituição em São Paulo e eles nos mandaram para morar em espaço embaixo de um viaduto com dezenas de outros refugiados. Não tinham janelas e as pessoas chegavam a passar mal”, relembra.
Durante aproximadamente quatro meses ela e os familiares tiveram de ficar no local até a irmã mais velha conseguir emprego e alugar uma casa. “Eu não queria vir para cá, mas éramos cristãos e estávamos sendo perseguidos em Luanda. Meu pai havia desaparecido e o meu irmão de 5 anos foi assassinado. Eles (muçulmanos) chegaram atirando em nossa casa e todo mundo começou a fugir, inclusive nós”, conta. Há dois anos no Brasil, Pauline e a família, mesmo em meio aos obstáculos, tentam reconstruir aqui o que foi destruído em Angola: o próprio lar e a esperança de um futuro digno.
E foi pensando em resolver exatamente esses problemas que Joanna Ibrahim, 30 anos, fez as malas rumo ao Brasil. Após sofrer com a guerra que assola o território de Damasco, capital da Síria, Joanna decidiu, em 2014, se refugiar no Brasil em busca de uma vida melhor. “Eu e minha família quase morremos porque a cidade estava sendo alvo de diversos bombardeios. Não tinha expectativa nenhuma de vida e não conseguia imaginar como seriam as coisas no futuro. Foi então que resolvi sair de lá, não queria continuar arriscando minha própria vida”, recorda.
Ela desembarcou no Paraná, onde permaneceu por oito meses e, sem falar a língua portuguesa e com dificuldade de conseguir emprego, mudou-se para Juíz de Fora, em Minas Gerais. Foi lá que, após refletir sobre a complicada situação dos refugiados no Brasil, inclusive a dela, decidiu criar um projeto para ajudá-los. “Para implementá-lo eu precisava me mudar para São Paulo, onde a concentração de refugiados é maior”, conta. Já em solo paulistano, especificamente em Pinheiros, Zona Oeste, alugou espaço e abriu, há seis meses, as portas do restaurante Open Taste, um negócio compartilhado. É nele que toda sexta-feira Joanna convida uma família diferente de refugiados ou imigrantes para cozinhar pratos típicos da região de origem. Ela acredita que, a partir da culinária, é possível fazer com que o povo brasileiro conheça diferentes culturas. “É uma forma de entrar em contato com os refugiados e com os costumes de cada país.” Além disso, o projeto tornou-se fonte de renda para as famílias, que ganham cerca de 60% do valor arrecadado com a venda dos pratos.
O grande objetivo de Joanna, a longo prazo, é expandir ainda mais o negócio. A princípio pretende sair do aluguel, conquistar o próprio espaço e, posteriormente, proporcionar ensino profissionalizante aos refugiados, bem como capacitá-los para construírem carreira como chefs de cozinha. “Quero impactar mais vidas com o programa e criar uma estrutura melhor, assim poderemos girar a economia brasileira’, adianta. “A ideia é abrir o restaurante todos os dias e não ter apenas a comida. “Planejo criar ambiente onde os clientes possam ter experiência completa para entender a cultura de outros países.” Joanna espera que, assim como ela, os refugiados tenham, por meio do programa, a chance de reconstruir suas histórias no País que escolheram para viver. Para concretizar o desejo, ela arrecada doações no site opentastebrasil.org.
Para Marcelo Ennes, as iniciativas dos próprios refugiados são essenciais para ajudar no trabalho de acolhimento e inclusão e, por esse motivo, deveriam ser mais valorizadas pelas autoridades. “Para que ações assim se multipliquem é preciso organização maior por parte dos governos, principalmente os municipais. Eles devem apoiar e trabalhar na divulgação para que surjam iniciativas similares”, afirma.
A ideia é compartilhada pelo músico guineense Abou N’Gazi Sidibé, 34 anos, fundador do Centro de Estudos da Cultura de Guiné. Há um ano e três meses ele toca o projeto sozinho e sente falta de apoio governamental. “É muito difícil manter o programa sem recurso. Muitas vezes preciso tirar dinheiro do próprio bolso para pagar o aluguel do espaço. Estou sofrendo com isso”, lamenta. É em uma casa simples e antiga no bairro da Sé, em São Paulo, que ele leciona aulas de danças tradicionais da Guiné, percussão com instrumentos típicos da África, oficinas culturais e faz contação de histórias sobre a cultura da Guiné e outros países africanos. Todas as atividades são voltadas para refugiados e brasileiros que tenham interesse em imergir, por meio da arte, nos costumes afro. “Existem pais que nasceram na África, mas que tiveram seus filhos no Brasil e nunca conseguiram levá-los para conhecer seu país de origem. Aqui essas crianças têm oportunidade de entender sobre a história, hábitos, educação e idiomas africanos”, explica. Ele diz ainda que o projeto é uma forma de fazer com que essa cultura esteja sempre viva no Brasil. “É o meu objetivo e estou lutando para conseguir.”
Além das aulas, Abou transformou o local em espécie de república. Ele abriga cerca de dez refugiados e cobra R$ 200 por quarto para arcar com os gastos do aluguel e contas de água e luz. Entre os moradores estão imigrantes de Bolívia, Haiti, Mali, Guiné, Togo e um nordestino. “Sei o quanto sofremos e o quanto é difícil conquistar o próprio espaço para morar. Por isso aluguei essa residência, para nos ajudarmos.” Apesar de ter se mudado para um cômodo na casa ao lado, por conta da superlotação, Abou passa seus dias no centro cultural com os amigos e alunos, sempre em busca de amparar mais pessoas.
Notas de solidariedade
No ano passado a Orquestra Mundana completou 15 anos de existência. Durante uma década e meia unindo músicos profissionais de diversas partes do mundo e do Brasil que vivam em São Paulo, Carlinhos Antunes, idealizador e diretor musical do projeto, sentiu a necessidade de incluir no elenco da orquestra refugiados e imigrantes. Aproveitando a data comemorativa, apresentou sua ideia para a assistente social Cléo Miranda e, juntos, desenvolveram o projeto musical Refugi, ativo desde 2017, quando o grupo passou a se chamar Orquestra Mundana Refugi. “É uma iniciativa de inclusão social no sentido de acolhimento. É também troca musical e cultural”, explica Antunes, que acoplou mais 13 integrantes na formação.
Agora são 22 músicos imigrantes e refugiados vindos de Congo, Irã, Palestina, Tunísia, Síria, Guiné, Cuba, França, China e de alguns Estados brasileiros. Juntos dão vida às composições de Antunes, trazendo às canções e aos arranjos características típicas de seus países de origem. Para isso utilizam instrumentos pouco conhecidos pelos brasileiros, como djembé, derbak, espécies de tambores, kanun, instrumento de cordas tradicional do Irã, cítara chinesa, bazouki árabe, ambos de cordas, dentre outros. Os sons emitidos, que diferem da orquestra clássica e remetem às músicas árabes, invadem a sala da casa do diretor musical, onde são realizados os ensaios toda segunda-feira. O tom agudo das vozes femininas torna o concerto ainda mais incrível. “O que buscamos é a excelência musical. Nossa orquestra mostra para o mundo que as diferenças só nos enriquecem”, observa Antunes. “Esse projeto consegue, por meio da música, passar uma mensagem em nome de todos os refugiados. Ele nos dá essa oportunidade. Foi uma das melhores coisas que aconteceram na minha vida”, relata Youself Seif, 25 anos, que deixou a Palestina em 2016.
Nesse um ano de existência a Orquestra Mundana Refugi gravou um disco, participou de programas televisivos dentro e fora do País, fez diversos shows e novos arranjos da música Caravanas, do cantor Chico Buarque. Para o segundo semestre de 2019 o grupo está trabalhando na produção de um novo disco.
Questionado sobre a importância do projeto na atual situação do Brasil, Antunes declara estar ‘desesperado’. “A ideia era fazer com que as pessoas tivessem um propósito de vida, mas estamos vivendo em um País fascista em que isso não adianta de nada. A orquestra está, sem dúvidas, ameaçada e estou preocupado com a nossa integridade física”, diz o diretor musical, fazendo menção às declarações de Jair Messias Bolsonaro (PSL), há pouco eleito presidente da República.
Em relação aos venezuelanos que estão se refugiando em Roraima, região Norte do Brasil, Bolsonaro sugeriu, em declaração ao jornal Estado de S. Paulo, em março deste ano, a construção de um campo de refugiados perto da fronteira. Segundo ele, para resolver a situação é preciso “primeiro, via Parlamento, revogar essa lei de imigração aí. Outra, fazer campo de refugiados. Outra: em vez de esperar passar o vexame do (Nicolás) Maduro expulsar os nossos embaixadores, já era para ter chamado há muito tempo e tomado outras decisões econômicas contra a Venezuela”. Cinco meses depois, em entrevista coletiva em São José do Rio Preto, enfatizou o discurso. “O Brasil não pode ser um Oasis de fronteiras abertas. A questão de acolhimento de venezuelanos é uma coisa. Acredito que você poderia buscar a ONU para que crie campos de refugiados para atenuar esse problema deles e da população, não só de Boa Vista como de Pacaraima (Roraima).”
De acordo com o sociólogo Marcelo Ennes, os discursos do futuro presidente são uma ameaça aos imigrantes e refugiados que vivem no Brasil. “É uma situação de muito risco para esses dois grupos. As declarações infringem não só a lei brasileira como resoluções internacionais. Agora o que nos resta é esperar para que a lei e os direitos dos refugiados e imigrantes sejam respeitados”, conclui.
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