Maternidade despedaçada

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Vanessa Soares

Estudos mostram que uma a cada quatro mulheres sofreram violência obstétrica; a maioria nem sabe disso

“Durante o parto eu não percebi, só queria ter minha filha e voltar para casa. Quando dei entrada no pronto-socorro, surgiram situações que me deixaram assustada. Demorou muito para ser atendida. Já estava com contrações bem doloridas e quando o atendimento começou, junto com ele vieram diversos exames de toque. A equipe de plantonistas me tratou, enquanto paciente, como pessoa inferior. Ficavam conversando amenidades enquanto me examinavam. E isso foi só o começo. O hospital era particular, na Vila Mariana. Até o sétimo mês pagamos um médico que disse que eu teria de fazer cesária, mas não queria, mesmo com diabetes gestacional. Resolvi ir para o convênio e encontrei médica que me pareceu bacana. Ela garantiu que eu teria normal e tudo daria certo. Acreditei. Chegando perto do nascimento, ela realizou procedimento que descola a membrana da placenta. Foi muito invasivo. Três dias depois, perdi o tampão mucoso. Fui para o hospital pensando que identificaria qualquer violência, mas tinha pouca informação e aceitei procedimentos como a ocitocina sintética no soro porque estava com dor e queria que acabasse aquilo. Mas aquilo era minha filha, não podia ser assim. Estouraram minha bolsa quando meu marido saiu do quarto para lanchar. Fiquei sem comer e beber das 10h até mais de 0h. Quando percebi que ela estava para nascer me colocaram na maca e o médico realizou a manobra de Kristeller, empurrou minha barriga com força e avisou que ficaria dolorida. E fiquei, dolorida e roxa. Também realizaram uma episiotomia e me deram anestesia local, então não senti minha filha passar. E quando nasceu, mostraram e a levaram embora. Só fui vê-la horas depois.”

O relato de parto acima é da artista plástica e artesã Ana Brenguel, 40, mãe da Milena, 6. Mesmo sem saber de imediato, foi vítima de violência obstétrica. Ela é uma entre tantas outras mulheres que já passaram por situações semelhantes. O termo ainda é pouco conhecido e choca. Apesar dos diversos procedimentos parecerem normais às mulheres que já deram à luz ou estão pesquisando sobre parto, todos caracterizam violência obstétrica se realizados sem que realmente exista necessidade ou se não forem informados às mulheres e autorizados por elas.

De acordo com a Defensoria Pública de São Paulo, “violência obstétrica é a apropriação do corpo e processos reprodutivos por profissionais da Saúde, por meio de tratamento desumanizado, abuso de medicação e patologização dos processos naturais, causando perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos, impactando na sexualidade e negativamente na qualidade de vida das mulheres”.

Apesar do assunto ser tabu, estudo da Fundação Abramo, de 2010, demonstrou que uma a cada quatro mulheres no Brasil sofreu violência obstétrica. Mas a ginecologista e obstetra Andréa Rebello, referência em parto normal da Casita – espaço de convivência para gestantes à primeira infância – de Santo André acredita que esse número possa ser maior. “As estatísticas subestimam o fato de que muitas pessoas nem sabem do que se trata ou não querem falar sobre isso. Se você perguntar a conhecidas se elas passaram por agressões verbais, recusa de atendimento, privação de acompanhante, lavagem intestinal, raspagem dos pelos pubianos, separação do bebê saudável, episiotomia de rotina, agendamento de cesárea eletiva sem indicação baseada em evidências científicas, restrição alimentar no trabalho de parto, sucessivos exames de toque, introdução de leite, fórmula ou oferecer chupeta ao recém-nascido sem a permissão da mãe, utilizar expressões com tom grosseiro ou zombeteiro, culpar a mulher em relação ao abortamento, entre outros, a VO (Violência Obstétrica) deve chegar a 100% dos partos.”

No entanto, segundo Damiana Angrimani, psicóloga especialista em gestação, parto e pós-parto, é preciso ressaltar que existe nuance importante neste tema. “Ninguém vai dizer que a mulher sofreu violência se ela não reconhece assim. Muitas vezes ouvimos relato de parto horrível e pensamos ‘nossa, quanta VO ela sofreu’, mas a mãe tem certeza que o procedimento foi incrível. Então, não é nosso papel. Só é violência obstétrica se a mulher legitima isso”, explica. Assim como muitas, Ana demorou a aceitar pelo que havia passado. “Só soube três meses depois, porque fiquei em negação. Encontrei grupos de mães nas redes sociais e fui vendo os relatos de cada uma e pensando: 'Imagina, hospital é seguro, é o melhor lugar para ter um filho'. Só que aí caiu a ficha.”

Algumas mulheres desenvolvem depressão pós-parto, ganham marcas e cicatrizes, sentem dor, perdem o prazer sexual e há ainda as que desistem de ter outros filhos. “Estava dilacerada, não dei conta do parto. Estava além de mim. Tive depressão. Me afastei da minha família. Tenho problemas com escape de urina, episódios de pânico. Ninguém se atentou ao que estava acontecendo. Assumi cargas mental e física além de mim”, relata Ana. E continua: “Fiquei traumatizada. Não teria outro filho para não passar por tudo de novo. Tive que fazer terapia. Descobri que a VO me fez reviver o abuso que sofri na infância. Estou contando com o tempo para curar as feridas”.

Damiana concorda que é preciso dar tempo ao tempo, além de buscar ajuda. “A violência já é tão horrível que acho que quando a mulher percebe ela pede ajuda. Nosso trabalho é ouvir, respeitando para que não se sinta violentada de novo”, finaliza.

O QUE DIZ A LEI

Hoje já é até possível encontrar, com certa facilidade, mulheres que têm consciência de que passaram por VO. No entanto, ainda não existem leis específicas que protejam as protejam. De acordo com Daniela Bucci, professora de Direito da USCS (Universidade Municipal de São Caetano) e doutora e mestra em Direito Humanos pela USP (Universidade de São Paulo), apesar da falta de lei federal específica, é possível, sim, fazer uma denúncia e entrar com processo criminal. “Dá para pedir indenização por danos físicos e morais”, explica. Mas isso não garante que o ocorrido será tratado com a importância necessária, por se tratar da Justiça comum.

DICIONÁRIO

-Ocitocina sintética no soro: utilizada para induzir as contrações e acelerar o parto. Causa contrações rápidas, fortes e com frequência maior e menos tempo de descanso, o que torna o processo doloroso.

-Manobra de Kristeller: consiste em pressionar a parte superior do útero para facilitar a saída do bebê, o que pode causar lesões como fratura de costelas da mãe e traumas encefálicos no bebê.

- Episiotomia: incisão efetuada no períneo (área muscular entre a vagina e o ânus) para ampliar o canal de parto.

* Se caracteriza violência obstétrica apenas quando os procedimentos são realizados sem indicação e autorização da paciente.

 

 




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