Vozes que cantam além

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Daniela Pegoraro e Vinícius Castelli

Artistas 'queer' estão conquistando espaço no cenário musical e exigindo respeito em alto e bom som

Há poucos anos, testemunhar a cena de uma drag queen cantando para milhares de pessoas ao lado de uma atração internacional no Rock in Rio seria praticamente impossível. Mas em 2017, Pabllo Vittar (foto ao lado) foi lá no palco principal e se apresentou com a Fergie. Em um mundo onde os LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) se limitavam, na maioria das vezes, às apresentações em boates e clubes, o espaço que estão ocupando na música, especialmente, tem sido cada vez maior.

Pabllo, 23, que domina as paradas das rádios do Brasil e já fez parcerias com vários nomes do cenário, lidera movimento que está ganhando cada vez mais corpo por aqui: o dos ícones queer. Durante muitos anos, a palavra queer foi usada para discriminar quem não era heterossexual, homem ou mulher, aqueles que eram considerados estranhos, excêntricos, fora do 'padrão'. Há pouco tempo, a comunidade LGBT vem adotando o termo de forma positiva. Os queer acendem a reflexão sobre questões de gênero e orientação sexual, além de levantar a bandeira da liberdade de ser quem desejam ser. São vozes, aliás, que estão falando por multidões.

E há sobre o que cantar e lutar. De acordo com estudo divulgado ano passado pela Ilga (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Pessoas Trans e Intersexuais), 72 países ainda criminalizam a homossexualidade. Entre eles, 14 condenam homossexuais à prisão e oito, à pena de morte. O Brasil está entre o grupo que atende aos direitos dos LGBTs, pelo menos na teoria. Avançamos em leis sobre casamento e adoção, mas os dados criminais se mostram contraditórios. Só em 2017, a cada aproximadamente 20 horas um LGBT foi morto de forma violenta no País. Os dados são de pesquisa realizada pela ONG Grupo Gay da Bahia, que indica, além de tudo, que os números de homicídio envolvendo gays, lésbicas, transexuais e bissexuais do ano passado superaram os de três décadas atrás.

Por isso, quando essa minoria ganha voz e visibilidade, o sucesso se torna árdua conquista de espaço. Pabllo – que ganhou com o clipe da canção K.O o status do vídeo musical feito por uma drag queen mais visto no mundo – vem representando muita gente. E ela sabe disso. “Acho importante para que o debate sobre homossexualidade e gênero continue vivo, para que consigamos educar ainda melhor as crianças do nosso País, dando a liberdade para elas serem o que são”, explica. A cantora revela ainda que não imaginava que chegaria tão longe, embora sempre tenha sonhado com isso. “Fico muito grata de ver que a minha arte tem ultrapassado barreiras e hoje atinge público muito grande, com idades variadas.”

Outra pessoa que tem tido grande destaque é Liniker, 22. Com barba comprida, saia e batom, a cantora, que frequentou a Escola Livre de Teatro de Santo André, se considera uma pessoa trans. Liniker também se apresentou no palco do Rock in Rio em 2017 ao lado de Johnny Hooker, quando o primeiro beijo gay nos palcos do festival foi dado.

Quem também busca trazer o debate de gênero em suas músicas é a Mc Linn da Quebrada. Transexual, negra e periférica, a cantora define sua música como arma de resistência. Avaliando a atual cena musical e da arte, Linn enxerga mudanças de grande relevância. “Estamos nos transformando, tomando consciência de nossas identidades e de tudo que podemos por meio delas. Estamos ocupando mais espaços, nos fortalecendo cada vez mais”, reflete. Representando a letra T do LGBT, a artista anseia por um País que tenha mais abertura aos transexuais no futuro. “A música e as artes são apenas uma área. O mercado de trabalho de outros setores também deve se abrir, precisamos estar em todos os espaços.” Atualmente, o Brasil lidera o ranking como o País que mais mata pessoas trans no mundo.

Antes mesmo da cena LGBT ganhar tanto destaque, em 2011 a Banda Uó se lançava no mercado. É composta por um trio cheio de diversidade: a transexual Candy Mel, Davi Sabbag e Mateus Carrilho, ambos homossexuais. Em suas músicas, misturam o pop e o brega em letras descontraídas. Mateus Carrilho conta que também é testemunha desta abertura de mercado para os novos artistas. “Acho que o mundo está se desconstruindo. As pessoas ganharam vozes e cada vez mais têm a necessidade de serem representadas”.

Mas embora o cenário musical esteja se expandindo na diversidade, Mateus enfatiza que esses são apenas os passos iniciais de uma longa caminhada. “Isso é só o início. Não dá pra achar que a Pabllo (com quem participou no clipe da música Corpo Sensual) conquistou uma fama que está bom para todo mundo. Não está bom não”.

QUESTÃO DE REPRESENTATIVIDADE

Segundo a psicóloga clínica de São Caetano Luísa Chiocheti, esses artistas ganham força a partir do momento em que as pessoas se identificam com suas histórias. E também para aqueles que não se identificam (semelhanças pessoais de história, imagem), mas que pensam na importância destes artistas terem um espaço no meio público e, com isso, ampliar a possibilidade de se falar sobre assuntos como identidade de gênero e orientação sexual. “Quando se tem uma figura pública, com um perfil específico, que às vezes só a imagem já possibilita o início de discussões de assuntos de grande importância, já está aí uma forma de força e representatividade”, explica.

Para a professora e doutora Rebeca Nunes Guedes de Oliveira, docente do Programa de Mestrado Profissional em Comunicação da USCS (Universidade Municipal de São Caetano) e pesquisadora no campo de estudos feministas e de gêneros, há vertente que desde os anos 1960 analisam e buscam compreender a situação dessas pessoas na sociedade, e transformá-las. Segundo ela, as pesquisas desconstroem a concepção equivocada e historicamente hegemônica de que as diferenças entre homens e mulheres são biológicas. “Não se nega que biologicamente os sexos são diferentes, as diferenças existem, mas historicamente têm servido de justificativa para exclusão, desigualdades e opressão. Quando se nasce com um determinado sexo, se carrega carga de normas sociais e estereótipos impostos pela sociedade.” De acordo com ela, essas regras são veiculadas por símbolos divulgados por muitas instituições nas quais a população se socializa. “Assim, qualquer maneira de viver, se relacionar, se comportar e se apresentar que foge a esses modelos préestabelecidos e normativos sofre opressão, exclusão social e, muitas vezes, violência”, explica.

E é aí que entra a necessidade das vozes desses artistas. Segundo a psicóloga, justamente por conta da identificação as minorias podem ver esses nomes como exemplos de pessoas iguais a si que conquistaram um espaço público e podem alcançar grande parte da sociedade, por meio da música, dança etc. “Não é de hoje que temos artistas que quebram algumas barreiras utilizando sua imagem e performances. Hoje, contudo, com os vários canais de comunicação, esses movimentos adquirem alcance maior e abrem mais espaço para discussão de temas como orientação sexual, identidade de gênero, transição de gênero, por exemplo”, explica. Rebeca acredita que as minorias necessitam dessas vozes para se sentirem menos oprimidas. Ela explica que quando se vê representantes desses grupos sociais historicamente oprimidos chegarem a posições de destaque nos diversos espaços sociais, a mensagem que se lê é que aquele lugar não é só dos homens, brancos, ricos, heterossexuais, magros e jovens como historicamente se acreditou.

 




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