Sem perder a ternura

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Karine Manchini

Wanderléa marcou gerações com suas músicas, estilo e atitude; aos 71 anos, já viveu grandes tragédias pessoais, mas comemora as cinco décadas de carreira em pleno auge e com o sorrisão no rosto

Desistir nunca. Não saberia viver sem meu trabalho". É com esta frase que a cantora, nascida em Minas Gerais, define a resistência em não se entregar tão facilmente, mesmo com as maiores dificuldades que a vida lhe trouxe. Wanderléa Charlup Boere Salim chegou plena aos 71 anos. Dura na queda, mas sem perder a ternura. Há 50 anos segue deixando marcas e fazendo história. Ao lado de Roberto e Erasmo Carlos, viveu a Jovem Guarda, movimento que dominou o show bussiness brasileiro na decáda de 1960. Foi uma das primeiras mulheres a representar o público feminino com sua independência e atitude. Mesmo pouco falado naquele tempo, deu seu jeito de ensinar o que é empoderamento feminino em uma época cujo machismo reinava. Quando as mulheres não eram reconhecidas pelos seus trabalhos e precisavam manter poses comportadas para se encaixar nos costumes da época, ela ultrapassou barreiras e se tornou um dos ícones femininos da década.

Seu grande grito de liberdade veio traduzido em seu modo de vestir. Wanderléa era sinônimo de ousadia, com suas minissaias, calças boca de sino, umbigo de fora e cabelos longos cacheados. O irmão foi grande incentivador. Ele gostava de desenhar e a cantora percebeu que precisava ir além do que era oferecido nas lojas. Pediu para ele rabiscar modelos de roupas que gostaria de ter, além de mandar fazer adereços e acessórios que antes não existiam no mercado, como botas de cano alto na altura da coxa – look que voltou a ser usado, aliás. Foi um fenômeno.

“Hoje enxergo com uma importância muito maior do que enxergava. Fico impressionada como marcou a vida de tantas pessoas. A intenção era me libertar de toda a pressão que vivia dentro de casa, das exigênciais sociais de que menina não fazia isso, de que saia muito curta não podia, não era recomendável dirigir nem fazer várias coisas. Tudo para as mulheres era escolhido pelos pais e os jovens da época não tinham música própria nem moda. Tudo era feito para adultos. Fui trazendo modernidade e modificando o comportamento sem ter essa intenção tão efetiva assim. Depois que o tempo foi passando saquei que fazia moda, inclusive, as garotas ficavam esperando lançamentos. Antigamente não tinha slogan de empoderamento feminino e de certa forma acho que trouxe isso para o Brasil”, relembra Wanderléa.

A cantora não suportava ver as diferenças entre gêneros e as desigualdades, que começaram dentro de casa. As meninas eram praticamente obrigadas a aprender serviços domésticos como se essa fosse a única opção possível, enquanto os meninos eram livres para escolher o que desejavam fazer. “Claro que o machismo ainda existe, mas no meu tempo era pior. Ganhávamos bonequinha para aprender a ser mãe. Nossos brinquedos eram mobília para a casinha, espanador, ferro, fogão. Para os meninos a diversão era bem mais legal. Tinha patinete, bola, bicicleta. Eles podiam ficar na rua até tarde e as meninas nem podiam sair”, diz.

Hoje, Wanderléa se sente bem mais esperançosa. “Está tudo mudando. O homem está correndo atrás das coisas e as mulheres são mais ligadas em administrar sua própria profissão, além da casa e dos filhos. Além disso, a mulher trabalha fora e o casal precisa dividir as tarefas domésticas. Mas a mulher ainda sofre muito. Eles (homens) ainda acham que não devem fazer determinadas coisas, temos um machismo forte e enraizado. É difícil.”

PROVAS DE FOGO

Não foi apenas o machismo que abalou Wanderléa. Muita gente não faz ideia, mas a cantora – sempre doce e sorridente – precisou enfrentar grandes perdas em sua vida. Quando criança, sua irmã mais velha morreu vítima de uma bala perdida. Além disso, foi casada com Nanato Barbosa nos anos 1970 e o rapaz, filho do apresentador Chacrinha, sofreu um acidente e ficou paraplégico. Eles acabaram se separando. Foi quando ela casou-se com o músico chileno Lalo Califórnia. O casal perdeu o primeiro filho, Leonardo, que morreu aos 2 anos afogado na piscina de casa. Após a tragédia com Leonardo, Wanderléa e Lalo tiveram mais duas filhas, Jadde e Yasmin. Em 1994, seu irmão Bill, estilista que sempre desenhou as roupas que Wanderléa, não resistiu às complicações da Aids.

Mesmo com o mundo desmoronando – a cantora chegou a enfrentar momentos de depressão – Wanderléa se apegou ao seu grande sonho: sua carreira. Foi assim que ela enfrentou os problemas e construiu estrada sólida na profissão. A ligação com a família também é forte, base para tudo o que faz. Durante a conversa com a equipe de reportagem da Dia-a-Dia, a artista pede educadamente um tempo e, no intervalo, diz carinhosamente para a filha Yasmin, que está de saída: “Filha, vai com Deus, e quando chegar me avisa”.

A Wanderléa mãe também está em sua autobiografia, que será lançada ainda este ano pela Editora Record. Na obra, ela conta detalhes de sua vida. “O que me motivou a escrever foram as coisas mais pesadas que vivi. Fui escrevendo para me livrar dos sentimentos e até hoje não posso ler alguns capítulos que choro“, confessa a cantora. Os momentos de pesar foram tão grandes que a artista precisou da ajuda do jornalista Renato Vieira para ajudá-la a relatar os capítulos mais alegres da sua vida.

COM TUDO E MUITA PROSA

Completando 50 anos de carreira, Wanderléa esbanja saúde e vontade de trabalhar. Quem quer ver de perto um pouco desta energia pode conferir sua trajetória na Jovem Guarda no documentário musical – 60! Década de Arromba – que, além se ser em formato inédito no teatro brasileiro, mostra diversos períodos históricos nacionais e internacionais da música. O espetáculo foi tão bem aceito que teve suas temporadas prolongadas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Na Capital, fica em cartaz no Teatro Net durante todo o mês de julho.

A cantora confessa que precisou de muitos dias para pensar se deveria ou não aceitar a proposta de protagonizar algo tão intenso. “Fiquei enrolando para aceitar, pensei por um ano, porque precisava parar minha agenda de shows pelo Brasil para estar só por conta deste trabalho. Depois que vi o conteúdo, cujo tema abrange toda a década de 1960, percebi o nível do espetáculo e aceitei”, conta Ternurinha, que aparece a partir do segundo ato do musical cantando seus maiores sucessos, como Prova de Fogo e Pare o Casamento.

O espetáculo conta com a participação de 64 pessoas, entre atores e músicos. Ao longo da apresentação são introduzidos números musicais e circenses, mágicas, coreografias e projeções. O documentário musical leva o público a uma viagem no tempo, trazendo ao palco grandes acontecimentos, como quedas e ascensões presidenciais, casamentos de personalidades como Celly Campello e Elvis Presley, grandes guerras e a nova ditadura no Brasil, lançamento da primeira Barbie negra, além de tratar das mortes de John F. Keneddy, Edith Piaf, Maysa, Ary Barroso e Marilyn Monroe. A primeira viagem do homem à Lua, sucesso dos Beatles e outros inúmeros fatos culturais também não faltam no roteiro.

Mesmo com a vida agitada e com ensaios intensos que ocupam grande parte de seus dias, a cantora não abre mão da preocupação com as filhas. Wanderléa fala da dificuldade em ficar longe da família e de como deu seu jeitinho para unir todos neste período de trabalho com o espetáculo. “Minha filha Jadde e meu companheiro Lalo me acompanham nos shows que faço por todo o País. Ela está preparando o trabalho musical dela e comecei a levá-la nas apresentações para participar da minha banda. Já Lalo é produtor e diretor do grupo. Quando aconteceu o musical eu falei que iria sentir falta dela e perguntei se poderia vir junto. Ela concordou, mas queria fazer o teste, assim como os outros atores, e acabou passando na prova. Ficou trabalhando três meses junto com o grupo de artistas. Está maravilhosa, dando conta do recado, linda e fazendo um trabalho incrível”, se orgulha Wanderléa.

Além de levar Jadde e o companheiro para trabalhar no espetáculo, a artista conta com o apoio da filha Yasmim, que é fotógrafa e faz o cenário de seus shows. “Teria que ficar longe da minha família muitos meses e com isso eu pude aproveitar a família reunida, o que me deixou mais tranquila para enfrentar o musical. Matamos a saudade, rimos e nos divertimos juntos. Um acompanha o trabalho do outro”, explica.

Além da biografia e da participação no espetáculo 60! Década de Arromba, as novidades não param. Wanderléa pretende lançar um trabalho com músicas inéditas, que serão produzidas por compositores de sucesso como Marisa Monte e Erasmo Carlos. Além de iniciar o projeto musical Vida de Artista, em que interpreta canções escritas por Sueli Costa. Após o término do musical, Ternurinha pretende voltar com sua agenda de shows pelo País e finalizar todos os trabalhos que ainda estão pendentes, como a autobiografia.

A cantora tem a intenção de continuar na ativa como sempre esteve. E quando questionada se mudaria algum detalhe de sua vida pessoal ou profissional, revela que não saberia o que mudar, nem mesmo o seu jeito de ser. “Sou muito de ouvir. Gosto de receber críticas e acho que a vida precisa ser levada mais tranquilamente. Agradeço todos os dias por estar viva e por estar bem. Recebo tudo com o coração, mas confesso que sinto falta dos meus 20 anos. Gostaria, na verdade, de ter até 30 anos com a experiência de vida que tenho hoje. Mesmo assim, me sinto mais jovem do que realmente tenho de idade”, finaliza.

 



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