Incansável doçura

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Marcela Munhoz

 ‘Pode falar, está gravando, Laura’ (sorrisos ao fundo). É quando, então, pelo aplicativo de mensagens instantâneas e com a ajuda da assessora se ouve a inconfundível voz baixa, calma e pausada de Laura Cardoso respondendo uma a uma as perguntas enviadas para esta reportagem. O ‘bate-papo’ tecnológico se deu durante intervalo nas gravações da novela Sol Nascente, na Rede Globo. Naquele momento, mesmo os 428,3 quilômetros que separam Santo André do Rio de Janeiro, não foram suficientes para deixar de conseguir visualizar o jeitinho que Laura falava. Parecia que  estava alí, na sala, junto dela tomando um café da tarde. Atriz boa é assim mesmo. Passa emoção pelo tom de voz, pela maneira de dizer. E o que deu para traduzir desta nossa entrevista pode se resumir em três palavras: saudosismo, simpatia e gratidão, muita gratidão.

Claro que contar a história dos quase 90 anos de vida (a serem completados em 13 de setembro) e 70 de carreira de Laura Cardoso – que viveu o rádio, televisão, teatro, cinema, circo e dublagem (pasmem, ela é a Beth do desenho The Flinstones) – em míseras seis páginas de revista é impossível. É preciso, ao menos, uma exposição inteira dedicada a ela – justamente, o Itaú Cultural acaba de inaugurar uma, que segue até dia 30 de abril, na Avenida Paulista, em São Paulo. “A gente pensou em três espaços diferentes, mas sem ordem. Eles não são lineares, não tem um certo ou errado para começar. Queríamos mostrar que a carreira de Laura é assim, ela passou por muitos desafios, experimentou de tudo. Para ela, o tempo é agora. É uma mulher multitarefa, com várias frentes, grande operária, uma referência mesmo”, explica Galiana Brasil, integrante da equipe curatorial da ocupação. E logo na primeira pergunta já deu para perceber também o tamanho da humildade desta mulher, que se surpreendeu por ser uma das escolhidas para serem homenageadas na mostra. Ela falou com a gente antes da inauguração e ainda estava sem saber exatamente o que encontraria na ocupação. “Vai ter porção de fotos, pessoas dando depoimentos sobre minha carreira. Separei até o livro de poesias do meu pai. É mesmo tudo para mim? Mas vai ser muito legal, se Deus quiser”, ri.
Sorrisos não faltam mesmo para a artista, que é conhecida por seu bom humor nos bastidores. Difícil o tempo fechar para ela, mesmo quando precisou ser afastada da novela por quase três meses por causa de problemas de saúde. “Não sou fácil de desistir, não. Se comecei um trabalho tenho que terminar. Só vou parar quando morrer, daí não vai ter mais jeito”, brinca. No retorno às gravações, ganhou baita festa e protagonizou cena inesquecível com o elenco. Ela ainda se emociona quando lembra. “Estava ansiosa para voltar e fiquei feliz porque fui muito bem recebida pelos meus colegas, que considero a minha família. Foi um grande presente de todos a surpresa e essa personagem.” E continua: “Fico grata por ser requisitada por tantos autores, que têm confiança no que vou fazer.” Walter Negrão, autor de Sol Nascente, está em lista especial. “Conheço ele há mais de 50 anos. É autor muito honesto, o que escreve atinge diretamente o povo, são personagens que poderiam existir de verdade.”
 
 
SENTA, QUE LÁ VEM HISTÓRIA...
Dona Sinhá é uma vovozinha malandra que nasceu para aplicar golpes. Ela conquistou Laura logo de cara. “Construir um personagem não é fácil, é preciso inventar uma pessoa por dentro e por fora. O autor dá várias dicas, mas é o ator quem conclui. E Dona Sinhá tem tudo de interessante por si só. A cabeça dela é otima, é inteligente, esperta e  diva. Tem idade, mas é ativa, tem energia, vontade de fazer as coisas, de viver”, se declara. Tirando a parte dos golpes, a atriz fez sua própria descrição. E foi sempre assim, viu. A atriz nunca teve, sequer, dificuldades para decorar textos. Nem quando subia em um caixote de madeira para recitar poesia ou representar para a avó portuguesa quando era criança, no bairro Bela Vista, na Capital. Em todas as entrevistas que dá, faz questão de dizer que foi ali que nasceu a vontade de ser atriz (para saber mais detalhes, vale a pena ler a biografia Laura Cardoso: Contadora de Histórias, de Julia Laks). “Minha avó foi o primeiro público que tive”, ressalta.
Quando cresceu um pouquinho, aos 16 anos, “se ajeitou” e foi bater na porta da rádio Cosmos dizendo que queria fazer um teste para radionovela. Foi aprovada no mesmo dia. Trabalhou também na Rádio Tupi e depois na Cultura, onde conheceu e se casou com o ator e escritor Fernando Balleroni. Ficaram juntos por quase 40 anos, até sua morte, aos 55 anos. A televisão também chegou para Laura por causa de sua teimosia. Sempre insistia para a atriz Vida Alves e para o ator Cassiano Gabus Mendes que a escalassem para atuar. Deu certo. Começou no Tribunal do Coração, TV de Vanguarda, Tupi, e nunca mais parou. Foram mais de 70 trabalhos. “Confesso que sinto saudades do começo da televisão, quando não havia tanta tecnologia. Parece que existia  um sentido maior, era artesanal. Hoje está tudo meio que pronto, é só apertar um botão. Daí o cérebro não funciona também. Antigamente, a gente tinha que tentar, retentar, pensar. Era ao vivo, como se fosse teatro”, lembra. 
 
 
Difícil destacar os principais papéis de Laura, mas não dá para passar batido por Os Apóstolos de Judas (1976), Mulheres de Areia (1993), Irmãos Coragem (1995), Chocolate com Pimenta (2003), Caminho das Índias (2009), o remake de Gabriela (2012). No teatro, se destacou em Vereda da Salvação (1992) e no cinema em Através da Janela (2000). Entre todos os parceiros e parceiras, Laura foi desafiada a apontar com quem mais se sentiu à vontade. Lima Duarte é o escolhido. “Fiz coisas lindas com ele na televisão”. A atriz, porém, não conseguiu selecionar apenas um único momento emocionante na carreira. “Todos estão na minha cabeça, fazem parte da minha história. Todos os meus personagens foram importantes para mim, amo todos.”
As artes, no geral, sempre emocionaram e continuam a arrancar lágrimas de Laura. Mas ela vai além: enxerga nelas missão social. “Sempre as vejo (as artes) com boa vontade, com esperança de que tudo melhore. Espero que sejam mais apoiadas, respeitadas. É por meio delas que o ser humano se descobre, são sagradas. As vejo com muito respeito e prazer. O teatro, especialmente, é veículo de cultura, de esclarecimento. Quando está no palco, o ator tem a obrigação de transmitir o melhor do que faz para melhorar a Cultura do nosso País”. Questionada sobre o que gostaria de fazer ainda nas artes, Laura revela: “Uma tragédia grega novamente, é algo muito rico. O modo de interpretar, que é diferente do cotidiano, sempre me fascinou”. Tanto na vida profissional quanto na pessoal, Laura afirma que está feliz, satisfeita e pleníssima. “Já vivi tudo de bom. E uma coisa ótima que me aconteceu foi o nascimento do meu bisneto, Fernando”, elogia a atriz, que tem duas filhas – ela também teve um menino, que morreu aos três dias de vida – e duas netas. Aos 16 anos, Fernando se derrete ao falar da bisa que todo mundo gostaria de ter. “Admiro muito a força dela para encarar os obstáculos, sua disposição. É exemplo de pessoa e de bisa”, declara à Dia-a-Dia.
Ler também fascina a artista. Desde sempre. Para ela, o hábito é importante para qualquer profissão, qualquer pessoa. “Li a vida toda. Com o passar dos anos, fui aprendendo a ler um pouquinho de tudo, mas ao mesmo tempo fui selecionando o que me dá mais prazer. Tirando o gênero policial, gosto de tudo. Adoro romance, contos. Amo o Suassuna (Ariano) de paixão.” Ler, aliás, é a dica de Laura para quem perde tempo ao ficar inventando fofocas e postando na internet. A atriz já perdeu as contas de quantas vezes já leu que tinha morrido. “Acho brincadeira de mau gosto. Assusta a família que mora mais longe, é falta de respeito. Todo mundo vai morrer, então é brincadeira boba, burra. Detesto burrice. Aproveita o tempo e vai ler Ariano Suassuna, Guimarães Rosa. Em vez de escrever isso, escolhe uma frase bonita deles e posta.”
Com esse bom humor, alegria, gratição e humildade, Laura mantém seu status de mito, é sinônimo perfeito dos significados do seu nome – vitoriosa, triunfadora – e pelo amor ao seu ofício podia muito bem ter sido a musa inspiradora para a frase de seu escritor favorito (se não o foi): ‘Arte pra mim não é produto de mercado. Podem me chamar de romântico. Arte pra mim é missão, vocação e festa’. Ariano, essa é Laura.
 



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